terça-feira, 3 de março de 2009

Diálogos - Ainda sobre os medos



Não é a primeira vez que me chama a atenção para o facto de que escolho sempre o momento das refeições para iniciar conversas complexas e profundas.
Não sei bem porque escolho esses momentos, mas sei que nunca o que eu digo é menos profundo ou complexo.
Por acaso, ou não será por acaso, o momento das refeições, o bom vinho que as acompanha, propicia este estado de espírito que me impulsiona a abrir o fecho éclair da pele que veste a minha alma.

- Mas não percebes que os nossos medos batalham entre si, arranham e puxam cabelos, mais para se alimentarem mutuamente do que para ganharem uma posição?
- Que dizes? De que falas tu?
- Refiro-me aos nossos medos. Eu tenho consciência dos meus, de como estão sempre a tentar, numa luta subtil de poder, dominar a relação para que o meu ego se sinta seguro, em posição de vantagem em relação a ti.
- Estás a querer dizer que me tentas manipular?

Num tom jocoso, continua:

- Eu sabia …
- Estou a querer dizer meu querido que tentamos mutuamente manipularmo-nos, conseguindo esconder o que verdadeiramente nos manipula; a nossa base inconsciente, os receios profundos de nos perdermos em dores e emoções descontroladas.
- A que te referes? Eu não sinto nenhum descontrolo.
- Talvez precises de sentir, talvez tenhas de deixar os cavalos selvagens à solta, deixá-los a galope sem os tentares agarrar, sem medo de seres pisado mesmo que o sejas.
- Mas que cavalgada de ideias! Não achas que estás a exagerar? Não tenho a certeza de te conseguir entender.

Não sei se algum dia as palavras que me definem serão realmente ouvidas da mesma forma que eu me ouço, com a pureza com que são sentidas. Mas acho que desisti em persistir nas explicações.

- Apenas sinto vontade de partilhar contigo as minhas mais recentes descobertas.
- Mas afinal, que descobertas são essas querida?
- Adoro quando me tratas por querida. Como se me quisesses reafirmar o teu amor: “Não te compreendo neste momento, mas ouço-te porque te amo”. E sabes que isso quase me basta?

Revela o sorriso que lhe provoquei.

- Fazes-me sorrir, mas continuo sem entender.
- As descobertas, meu amor, a que me refiro, são descobertas muito pessoais mas que eu acredito possam servir a outros. Tal como os navegadores portugueses, que descobriram novos mundos, marcando caminhos até então desconhecidos. Eu descobri um novo mundo também.

Ironiza docemente piscando-me o olho:

- Querem lá ver! Tu, uma descobridora de novos mundos?
- Um mundo vivido a partir de uma nova forma de ser.
- E que forma de ser é essa que renova o mundo?
- Uma forma que integra tudo o que já fui, tudo o que quis ser e não fui, tudo o que sou e não quero ser, tudo o que não sou mas serei, em suma, tudo o que sou neste momento.
- Confundes-me … deixa ver; tudo o que foste, o que és e o que serás? Mas o que não és serve para alguma coisa?
- Serve sim, serve para eu perceber se quero ser ou não.
- Hum …
- E entre tudo aquilo que sou, sou também aquilo que não me agrada ser, e é essa parte de mim que despoleta os medos que tentam dominar o que sou em essência. Sabes, mesmo que não se goste é sempre muito mais confortável ser-se aquilo que se conhece e com que aprendemos a lidar mecanicamente, do que aquilo que sentimos ser e ainda não somos e receamos ser, por provocar batalhas transformando-nos. Mas no final, é isso que nos liberta.

Estendo a mão por cima da mesa. A dele vem ao encontro da minha e entrelaçam. O silêncio surge e consegue amenizar a erupção de palavras que expeli como um vulcão que já não aguenta mais conter o magma em movimento.
Ele ama porque ama e isso conforta-me. Porque não me satisfaço com a natureza simples do amor? Porque insisto em explicar o meu mundo novo?
Arrisco-me a queimar com a lava efervescente todos os vestígios do que me rodeia.
E apenas porque insisto em ser eu mesma... e porque acredito que o fogo purifica.

- Mas assim estarás sempre em batalhas – Conclui esboçando um meio-sorriso.
- E de espada em riste, pronta para combater os monstros, ganhando terreno para alargar mais ainda o espaço da expressão do meu verdadeiro eu.
- Muita filosofia, muita filosofia.

Sorrio. Reconheço que não é fácil ouvir-me. Valorizo o esforço. A vontade de me conhecer cada vez mais é maior do que o aborrecimento que possa provocar a minha dissertação espontânea.

- Mas voltando aos medos.
- Sim querida, voltando ao princípio.
- O meu medo provoca o teu medo que engrandece o meu e entramos num ciclo vicioso difícil de reconhecer se não estivermos atentos.
- Eu não sinto medo, pelo menos eu acho que não sinto medo. Mas em contra partida vejo os teus. Essa tua necessidade constante de me fazeres entender quem és, o que pensas e principalmente o que sentes.
- Tens razão e foste perspicaz. Tenho esse medo de não ser compreendida. Mas tu também tens medos. Por exemplo, sabes porque insistes em esclarecer que precisamos de espaço, de tempo para nós? Porque insistes em referir que temos de evitar a rotina? Para mim é óbvio. Tens medo de compromissos, tens medo de perceberes o quanto amas porque tens medo de te perderes na relação.

Aproveito a deixa para rever o tema que discutimos ontem, depois de amarmos os corpos. Conjuguei o verbo amar, ainda com a pele quente, e nesta sensibilidade polida no acto, percebi o medo quando não ouvi o eco.
Ao tocar no assunto, ele voltou a falar na importância de não cairmos na rotina que nos separou há 6 meses atrás. E eu insisti. Que rotina tem a nossa relação? Se não temos dois fins-de-semana iguais, se mudamos de paisagens nas nossas viagens idílicas, se nem sequer moramos juntos? Se temos mundos diferentes, amigos diferentes? Se eu abomino rotina?
Medo, medo de amar. Esse foi o meu diagnóstico. Conheço demasiado bem este medo.

- Perder-me? Mas eu sei exactamente onde estou na relação! - Insiste já com sinais de irritação.
- Então diz-me. Onde te encontras tu na relação?

Depois de alguns segundos em que fecha os olhos e suspira profundamente, volta a olhar para mim, mantendo uma distância segura que se revela no tom de voz, mais frio, mais decidido.

- Maria, estou na relação contigo mas talvez não sinta as mesmas coisas que tu. Somos dois a tentar encaixar vivencias. Sei que não é fácil, sinto que caminho sem saber bem para onde mas sei que estou no caminho que escolhi.
- Então, se não sabes para onde vais, pelo menos sabes porque escolheste este caminho e não outro?

Não pretendo provocar respostas concretas, espero apenas conseguir marcar um mapa para ter a certeza de que caminhamos lado a lado. Olho para ele franzindo ligeiramente o sobrolho, preocupada com o resultado desta conversa. Ela chegou a um ponto em que ele se permite ponderar, olhar para dentro e falar o que sente. Este era um dos objectivos, mesmo que não tenha sido inicialmente definido.

- Não sei querida. Tenho de dar a mão à palmatória. Tal como tu, limito-me a seguir o meu coração. Sei que é aqui e agora que quero estar.

Comove-me a humildade de quem ama, a sinceridade que expõe a alma. Nestes momentos vejo o divino, esqueço o homem e apaixono-me outra vez.

- Querido, eu não tenho certezas, eu não me sinto completamente segura e talvez entre em pânico de vez em quando. Mas alguma coisa me faz ficar também. E não é a necessidade de ti, mas o amor que sinto por ti, e por mim, claro.

Permito-me uma pausa para respirar mais profundamente. Procuro mentalmente as palavras que soltem os sentimentos que quero exprimir:

- Ao reconhecer os meus monstros que aprendi a tomar como meus e apenas meus, encurralo-os num espaço interior e inicio a luta silenciosa para, primeiro enfraquecê-los com a minha consciência e depois deixa-los ir, com compaixão.

Mesmo sabendo que ele poderá não partilhar as minhas crenças em vidas paralelas e vidas passadas, acrescento:

- Foram demasiadas vidas com eles como companheiros, a fazerem parte de mim, a tolherem a expressão maior do amor. Integro-os agora no todo que eu sou, e vivo com eles sem os negar mas sem os deixar dominar.

O vinho branco maduro que escolhemos aquece sobre a mesa. A comida arrefece e já não tem sabor.
Tenho de concordar com ele, não é o cenário ideal para este tipo de conversas.
Mas a alma precisa também de alimento e a minha andava esfomeada depois das batalhas anónimas que perpetrou com os tais medos.
Calmos, serenos e cúmplices, erguemos os copos e brindamos sem desligar o olhar um do outro ainda de mãos entrelaçadas sobre a mesa.

- A nós, à nossa coragem e à aventura que nos espera!


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